quinta-feira, 9 de julho de 2020

Zinha e sua boneca com olhos de vidro e unhas para pintar


Pequena e insegura ela vê as águas do rio correr.
Sua mãe está longe, seu pai morto, sua família doente.  A febre tifo dizimava e as águas continuavam correndo. Quantas vezes as águas do rio levavam as roupas que ela lavava ali, e assim buscando-as, ela aprendeu a nadar. Não podia perder as roupas caras que nunca seriam suas.
O dia começava cedo, bem longe dali a mãe já limpava casas, e buscava a todo desespero, comida para quatro crianças pequenas, com dez, oito, seis e quatro anos. Tão pequenas e sem força, mas ao mesmo tempo tinham que ser adultas pra se protegerem enquanto a mãe buscava o alimento.
Quase instintivo, quase primitivo, tão duro e tão cruel. Era assim a vida de uma família que ficou para sobreviver naquela cidade da Bahia.
 A mãe chegava quando o sol estava indo embora, as crianças já limpas, alimentadas da farinha que era feita na própria terra e as roupas que havia trazido na noite anterior, sua filha já havia lavado, engomado e estavam prontas para serem entregues as clientes da cidade.
Brincar? Não havia bonecas! O máximo que conseguiam eram ossos de gado, que muitas vezes eram amarrados aos cabelos do milho e viravam lindas donzelas passeando na terra.
O sol acordava as crianças, pois a mãe já estava longe, não podia ter esse luxo.
Sonho? Era possível ter sonhos num lugar desses? Sim, quem sabe um dia o pai não voltava da cidade com as latas de bolacha enormes que trazia sorrisos no rosto daqueles pequenos.
Mas a Zinha tinha um sonho, ter uma boneca com cabelos de verdade.
Se aos seis já lavava as roupas no rio, aos oito era babá em “casa de família”. Cuidava de duas crianças para a patroa trabalhar o dia todo fora.
Enquanto isso, ela cozinhava, fazia a limpeza da casa e deixava seus dois filhos impecáveis para ela curtir quando voltasse do trabalho.
Quanta responsabilidade para uma criança de oito anos. Sem erro, sem medo!
Mas certo dia a saudade foi maior, ela esperou o dia de folga da patroa e fugiu, sertão adentro atrás da sua família, e chorou pedindo a mãe que a escondesse, pois não queria mais ficar longe.
OITO anos!
Ela tinha uma mãe má? Não!
Só quem conheceu sua mãe pode dizer sobre este serzinho de um metro e cinqüenta que amava tanto, como se não houvesse o próximo minuto.
Uma mãe desesperada, que ficou com cinco filhos para criar, sim; cinco filhos, mas um se foi pequeno ainda, morto por um “golpe de ar”.
Tinha que ser muito forte pra sobreviver naquela situação e a menina de dez anos se sentiu culpada por muito tempo, mas se a consciência dela tivesse estudo ou um mínimo de cultura, essa culpa não existiria.
Zinha disse:
Minha vida daria um livro!
Sim. Daria uma série, com temporadas e mais temporadas de lição de vida a tantos leitinhos com pêra que conhecemos em 2020 que nem sabem o que é uma cacimba.
Ah! A Cacimba. Era tão mais fácil quando foi trabalhar perto da cidade e a roupa era lavada na cacimba. Lá não precisava nadar quando a roupa corria nas águas.
Voltando ao sonho da Zinha, ter uma boneca com cabelos louros, boneca que piscava, tinha roupas de tecido e mãos que ela poderia pintar as unhas.
Zinha também teve problemas de saúde na infância, por ser asmática, tomou muita “surra de folha” pra sarar, tomou tanto chá que hoje conhece bem as ervas. Os vizinhos choravam quando a viam apanhar para passar a asma, mas; o desespero da falta de atendimento faz uma mãe recorrer à simpatia, mesmo doendo, ela batia, até “despelar” o galho. E Zinha voltava a respirar.
Um dia sua mãe a levou no médico, um dentista. Ela precisava tirar seus dentes de leite. Todos eles!
Não! Não dá!
Duas horas caminhando mais duas horas na carroceria do caminhão pra chegar à cidade e fazer a cirurgia, e depois ainda tinha às seis horas de volta.
Mas a mãe prometeu a boneca, e ela aceitou.
Seu sonho tinha uma forma de se realizar.
Ela tirou todos os dentes!
Voltou pra casa. A mãe prometeu que em outro dia buscaria a boneca. E ela, contava os dias pra boneca chegar.
Mas a mãe nunca conseguiu comprar.
Zinha esperou, cresceu, casou.
Morando em São Paulo, na luta ainda de uma vida de conquistas, sua terceira filha completou sete anos e uma tia, a presenteou com uma boneca que era de sua mãe.
Cunhada de Zinha, de pouco contato, estava se desfazendo de coisas antigas.
Sabe o que Zinha viu entrar na sua casa?
Sua boneca!
Trinta anos depois ela piscava, tinha cabelos loiros, roupas de tecido e unhas para pintar.
Zinha limpou, penteou seus cabelos, e se desculpou com sua filha que não poderia brincar.
Enquanto ela pintava as unhas via as águas do rio correr, a terra vermelha levantar pó, as roupas das clientes balançarem no arame farpado a secar, as crianças lindas que ela ajudou a cuidar, o final da tarde que trazia sua mãe de volta pra casa, à lata de bolacha... Ah! A lata de bolachas.
Tantas lembranças, tantos ensinamentos, tantas histórias que hoje, quem conta pode afirmar: Medo não cabe a Zinha! Ela é guerreira, ela é forte, ela é a mãe que penteia a boneca.

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