Pequena e
insegura ela vê as águas do rio correr.
Sua mãe está
longe, seu pai morto, sua família doente.
A febre tifo dizimava e as águas continuavam correndo. Quantas vezes as
águas do rio levavam as roupas que ela lavava ali, e assim buscando-as, ela
aprendeu a nadar. Não podia perder as roupas caras que nunca seriam suas.
O dia
começava cedo, bem longe dali a mãe já limpava casas, e buscava a todo
desespero, comida para quatro crianças pequenas, com dez, oito, seis e quatro
anos. Tão pequenas e sem força, mas ao mesmo tempo tinham que ser adultas pra
se protegerem enquanto a mãe buscava o alimento.
Quase
instintivo, quase primitivo, tão duro e tão cruel. Era assim a vida de uma
família que ficou para sobreviver naquela cidade da Bahia.
A mãe chegava quando o sol estava indo embora,
as crianças já limpas, alimentadas da farinha que era feita na própria terra e
as roupas que havia trazido na noite anterior, sua filha já havia lavado,
engomado e estavam prontas para serem entregues as clientes da cidade.
Brincar? Não
havia bonecas! O máximo que conseguiam eram ossos de gado, que muitas vezes eram
amarrados aos cabelos do milho e viravam lindas donzelas passeando na terra.
O sol
acordava as crianças, pois a mãe já estava longe, não podia ter esse luxo.
Sonho? Era
possível ter sonhos num lugar desses? Sim, quem sabe um dia o pai não voltava
da cidade com as latas de bolacha enormes que trazia sorrisos no rosto daqueles
pequenos.
Mas a Zinha
tinha um sonho, ter uma boneca com cabelos de verdade.
Se aos seis
já lavava as roupas no rio, aos oito era babá em “casa de família”. Cuidava de duas
crianças para a patroa trabalhar o dia todo fora.
Enquanto isso,
ela cozinhava, fazia a limpeza da casa e deixava seus dois filhos impecáveis
para ela curtir quando voltasse do trabalho.
Quanta
responsabilidade para uma criança de oito anos. Sem erro, sem medo!
Mas certo
dia a saudade foi maior, ela esperou o dia de folga da patroa e fugiu, sertão adentro
atrás da sua família, e chorou pedindo a mãe que a escondesse, pois não queria
mais ficar longe.
OITO anos!
Ela tinha
uma mãe má? Não!
Só quem conheceu
sua mãe pode dizer sobre este serzinho de um metro e cinqüenta que amava tanto,
como se não houvesse o próximo minuto.
Uma mãe
desesperada, que ficou com cinco filhos para criar, sim; cinco filhos, mas um
se foi pequeno ainda, morto por um “golpe de ar”.
Tinha que
ser muito forte pra sobreviver naquela situação e a menina de dez anos se
sentiu culpada por muito tempo, mas se a consciência dela tivesse estudo ou um mínimo
de cultura, essa culpa não existiria.
Zinha disse:
Minha vida
daria um livro!
Sim. Daria
uma série, com temporadas e mais temporadas de lição de vida a tantos leitinhos
com pêra que conhecemos em 2020 que nem sabem o que é uma cacimba.
Ah! A Cacimba.
Era tão mais fácil quando foi trabalhar perto da cidade e a roupa era lavada na
cacimba. Lá não precisava nadar quando a roupa corria nas águas.
Voltando ao
sonho da Zinha, ter uma boneca com cabelos louros, boneca que piscava, tinha
roupas de tecido e mãos que ela poderia pintar as unhas.
Zinha também
teve problemas de saúde na infância, por ser asmática, tomou muita “surra de
folha” pra sarar, tomou tanto chá que hoje conhece bem as ervas. Os vizinhos
choravam quando a viam apanhar para passar a asma, mas; o desespero da falta de
atendimento faz uma mãe recorrer à simpatia, mesmo doendo, ela batia, até “despelar”
o galho. E Zinha voltava a respirar.
Um dia sua
mãe a levou no médico, um dentista. Ela precisava tirar seus dentes de leite.
Todos eles!
Não! Não dá!
Duas horas
caminhando mais duas horas na carroceria do caminhão pra chegar à cidade e
fazer a cirurgia, e depois ainda tinha às seis horas de volta.
Mas a mãe
prometeu a boneca, e ela aceitou.
Seu sonho tinha
uma forma de se realizar.
Ela tirou
todos os dentes!
Voltou pra
casa. A mãe prometeu que em outro dia buscaria a boneca. E ela, contava os dias
pra boneca chegar.
Mas a mãe
nunca conseguiu comprar.
Zinha
esperou, cresceu, casou.
Morando em
São Paulo, na luta ainda de uma vida de conquistas, sua terceira filha
completou sete anos e uma tia, a presenteou com uma boneca que era de sua mãe.
Cunhada de
Zinha, de pouco contato, estava se desfazendo de coisas antigas.
Sabe o que
Zinha viu entrar na sua casa?
Sua boneca!
Trinta anos
depois ela piscava, tinha cabelos loiros, roupas de tecido e unhas para pintar.
Zinha
limpou, penteou seus cabelos, e se desculpou com sua filha que não poderia brincar.
Enquanto ela
pintava as unhas via as águas do rio correr, a terra vermelha levantar pó, as
roupas das clientes balançarem no arame farpado a secar, as crianças lindas que
ela ajudou a cuidar, o final da tarde que trazia sua mãe de volta pra casa, à
lata de bolacha... Ah! A lata de bolachas.
Tantas lembranças,
tantos ensinamentos, tantas histórias que hoje, quem conta pode afirmar: Medo
não cabe a Zinha! Ela é guerreira, ela é forte, ela é a mãe que penteia a boneca.
Nenhum comentário:
Postar um comentário